terça-feira, 12 de outubro de 2010

CARTA A UM GAROTO GAY


EXTRAÍDO DA REVISTA PLANETA. São Paulo, SP: Editora Três, novembro de 1994.

Sexo e Autodesenvolvimento

Preconceitos contra minorias desde sempre fazem parte do elenco das posturas ética e espiritualmente equivocadas, cuja manifestação traz apenas sofrimento injusto. Luís Pellegrini responde aqui à carta de um jovem leitor, vítima desse tipo de atitude que deveria ter sido há muito eliminada – particularmente por aqueles que se dizem inseridos numa vida de valor espiritual.

Recebi, há pouco tempo, a carta que transcrevo abaixo. Várias outras, de conteúdo análogo, chegaram-me às mãos no decorrer do tempo. Fui também muitas vezes procurado por pessoas que viviam o mesmo problema colocado pelo autor dessa carta, um rapaz de apenas 17 anos: o conflito entre um comportamento ou opção sexual peculiar e a necessidade de vida espiritual.
A questão é delicada e de abrangência, particularmente para nós que ainda vivemos dentro dos cânones da cultura judaico-cristã, tão cheia de preconceitos, temores e equívocos a respeito da função natural do amor e do sexo. Na esperança de ajudar o leitor que me escreveu solicitando orientação, e tantas outras pessoas que enfrentam os mesmo problemas, publico também a resposta que lhe remeti. Mantenho, obviamente, o sigilo do seu nome. Quanto ao mais, a carta fala por si.
Espero que minha resposta esteja à altura do drama pessoal nela contido.
“Prezado Luís Pellegrini, sou leitor das suas matérias na revista PLANETA e vejo que você fala de muitos assuntos como a new age e os caminhos modernos para a vida espiritual. Escrevo esta carta com a esperança de que você me dê algum esclarecimento, pois vivo um problema que está me deixando muito ansioso. Tenho 17 anos e começo a me preparar para o vestibular; quero fazer psicologia ou jornalismo, ainda não decidi.
Desde menino tenho interesse em assuntos de mistério, como parapsicologia, espiritismo, discos voadores. Comecei a ler também um pouco de budismo e já procurei um professor de ioga e gostei muito. Agora entrei num grupinho de pessoas interessadas em meditação. Acho que aos poucos vou entrando nesse mundo que considero tão importante.Mas tem um problema: eu sou gay.
Descobri isso quando tinha 14 anos e já tive algumas experiências gays. Na minha família, ninguém sabe; acho que minha mãe desconfia, mas ela não fala nada. Minha família é católica, e quando eles falam do assunto mostram que são contra. Ou vêm com aquela história de que é pecado ou ficam com gozação, pois para eles ser gay é ser bicha louca. Meus amigos que são gays já me disseram que eu tenho de me acostumar, porque vai ser assim toda a vida.
Aqui na minha cidade veio o escritor espírita X, ele é do Rio de Janeiro, para dar uma conferência a que eu fui assistir. Teve muita pergunta depois, e uma pessoa perguntou como o espiritismo via o homossexualismo. Ele disse que o espiritismo aceita todo tipo de pessoa, pois só Deus tem o direito de julgar as pessoas. Mas ele disse que os homossexuais deveriam tomar a iniciativa de procurar tratamento para mudar, pois trata-se de uma coisa contra a natureza e tudo que se faz contra a natureza atrapalha e impede o crescimento espiritual da pessoa.
Aí perguntaram a ele, porque parece que ele é médico, qual o tratamento que cura o homossexualismo, e ele respondeu que recomenda aos seus pacientes tomar um banho gelado toda vez que sentir vontade. Todo mundo na platéia deu risada quando ele falou isso, mas eu me senti mal, pois se todos deram risada é porque concordavam, não é mesmo?Fiquei confuso depois dessa conferência. É mesmo verdade o que ele falou?Estou começando um caso com um amigo da escola e gosto da companhia das mulheres, mas não sinto atração por elas. Esta sensação de me sentir anormal é horrível, mas eu não consigo entender; se eu nasci gay, como posso mudar?
Estou ficando apaixonado por esse meu colega, acho que essa é a primeira vez que isso me acontece, mas às vezes olho para ele e parece que ele é meu inimigo. Estou muito confuso e não sei com quem conversar sobre isso que está me acontecendo. Será que você pode me ajudar?
Outro dia me senti mal na reunião de meditação, parecia que eu estava fazendo alguma coisa que para mim é proibida. O endereço que eu lhe mando não é da minha casa, é de uma amiga que veio estudar aqui, ela mora sozinha com a empregada. Tenho medo que meus pais abram a sua carta se você me mandar uma.”
Antes de transcrever minha resposta a esse jovem leitor, quero relatar um episódio que me ocorreu dois ou três dias antes de a carta dele chegar. Trata-se de um episódio que reforçou minha decisão de publicar essa correspondência, pois representa um triste testemunho dos ferozes preconceitos que, ditados pelo medo e pela ignorância, ainda circulam não apenas naqueles segmentos menores de onde já deveriam ter sido há muito erradicados – os assim chamados “meios espiritualistas”.Uma íntima amiga minha acertou recentemente um encontro em São Paulo entre um conhecido seu, um aidético já em avançado estado de manifestação da doença, e um curador especializado em terapias alternativas do tipo “curas energéticas e espirituais”.
A idéia era, como sempre, e dada a gravidade do caso, tentar todos os recursos, mesmo os fora da medicina convencional, na tentativa de salvar o doente ou, pelo menos, melhorar o seu estado.Durante o encontro, o paciente viu-se pouco a pouco envolvido numa conversa estranha e sinuosa, cujo conteúdo finalmente revelou-se com clareza. Para abreviar, o curador queria convencer o paciente de que, para conseguir a cura, ele deveria sinceramente arrepender-se de todo o seu passado gay. O curador chegou ao ponto de sugerir ao rapaz verdadeiros atos de contrição, com a abominação da sua vida amorosa pregressa. O discurso moralista e cruelmente inquisidor produziu o seu efeito inevitável: uma grande depressão psicológica e acentuada piora do estado geral do rapaz.
Com que direito, deve-se perguntar, esse pretenso “curador espiritual” julga a vida e o passado das pessoas? Terá ele por acaso procuração de Deus para isso? Seu comportamento deve ser classificado como puro fascismo moralista, sem base em nada que não seja o preconceito e a neurose de onipotência que, infelizmente, impregnam o ego de tantas pessoas. Por essa razão, situações dolorosas como aquela narrada na carta do jovem leitor são tão freqüentes. Situações que devem ser combatidas e denunciadas.
Aqui vai a resposta ao meu correspondente:
“Meu querido e jovem amigo, quero que você leia esta carta com muita atenção. Leia várias vezes, devagar, procurando entender bem cada ponto dela. Algumas coisas que eu digo são minhas opiniões pessoais, amadurecidas ao longo da vida, e outras coisas eu aprendi no estudo das grandes religiões, de algumas escolas chamadas ‘esotéricas’ e do contato com a moderna psicologia. Outras coisas foram-me ensinadas por gente que sabe muito mais do que sobre a realidade da vida e do mundo.
Devo afirmar para você que todo esse aprendizado foi muito libertador para mim. Espero sinceramente que essas informações também sejam libertadoras para você.Na primeira metade do nosso século viveu na Índia um grande homem, considerado uma das pessoas mais sábias dos tempos modernos. Chamava-se Ramana Maharishi. Dizem que falava pouco, mas cada coisa que dizia tinha o poder de trazer paz e tranqüilidade, e de colocar a pessoa que o consultava no caminho da mais correta espiritualidade. Quando alguém chegava perto dele e perguntava o que fazer para se realizar como pessoa, e para ter êxito na vida espiritual, Ramana apenas perguntava àquele indivíduo qual era o seu nome. Se a pessoa respondesse, por exemplo, ‘João’, ele simplesmente dizia: ‘Seja João.’
Esse jeito aparentemente simples e banal de responder encerrava uma das mais fundamentais verdades psicológicas e espirituais: nós só conseguimos crescer na vida espiritual quando formos exatamente aquilo que somos. Ou seja, quando formos coerentes com a nossa verdadeira natureza interior. Enquanto formos falsos, mentirosos e hipócritas, principalmente falsos, mentirosos e hipócritas com nós mesmos, nenhuma realização pessoal, nenhuma vida espiritual verdadeira são possíveis. É claro que, para sermos fiéis a nós mesmos, é preciso que, antes, saibamos com muita clareza o que somos. Por essa razão é que todo sistema religioso ou iniciático verdadeiro é constituído, antes de tudo, de um sistema de autoconhecimento.
Depois de sabermos quem somos, aprendemos a aceitar e respeitar a nós mesmos. Aprendemos a ser fiéis a si próprios. Só depois disso é que podemos pensar em alcançar altos níveis de vida espiritual.
A fidelidade a si próprio é, portanto, condição imprescindível para que cresçamos como seres inteiros, e não como pessoas fragmentadas, pessoas que vão pelo mundo arrastando os seus pedaços desconjuntados.Você diz na sua carta que se sente ‘anormal’, e que ‘essa sensação é horrível’. Mas você já parou para pensar no que quer dizer ‘anormal’?
Normal vem da palavra norma, e significa apenas um padrão que é adotado pela maioria. Mas isso significa que padrões diferentes, adotados por minorias, sejam necessariamente errados? É claro que não. Tais padrões são apenas isso: padrões minoritários.A maioria das pessoas, em geral por ignorância, comete por outro lado um equívoco tremendo: confundem ‘normal’ com ‘natural’. Mas os dois conceitos são diferentes. Normal é, como já disse, o padrão da maioria, e seu valor é apenas relativo.
Natural é aquilo que pertence e é originado pela natureza profunda da pessoa, e seu valor é, em última análise, absoluto.Se levarmos isso para o tema da vida espiritual, chegaremos à conclusão de que ser ‘normal’ é coisa de pouca importância. Dependendo da ‘normalidade’, até atrapalha.
Em contrapartida, ser natural é mais do que fundamental: é imprescindível. Ninguém pode ser feliz, nem se realizar na vida espiritual ou qualquer outro aspecto da vida, se não for rigorosamente fiel à sua natureza interior.Você diz que é gay, e parece estar convicto disso. Se você, que é ainda tão jovem, tiver certeza dessa convicção, só posso lhe dar meus parabéns.
Muita, muita gente que tem o dobro ou o triplo da sua idade, ainda não chegou a uma conclusão quanto à sua real orientação sexual.Vou lhe contar um segredo: para a verdadeira sabedoria espiritual, aquela sabedoria que é conservada no fundo dos sistemas religiosos autênticos, bem como para a psicologia moderna, os seres humanos não são heterossexuais ou homossexuais.
Todos nós somos simplesmente seres sexuais. Criaturas vivas dotadas de uma força mágica chamada ‘energia sexual’. A energia sexual é apenas uma das muitas formas que a energia da vida encontra para se manifestar. Essa energia, em si mesma, não é masculina nem feminina, não é boa nem ruim, não é heterossexual nem homossexual. Ela é a mesma energia nos homens e nas mulheres. A natureza a criou para que estimule a reprodução da espécie. Mas não apenas para isso: para que também possibilite as necessidades humanas naturais do amor e prazer.Alguns sistemas religiosos e algumas escolas iniciáticas – aquelas escolas onde a pessoa entra para tentar viver uma evolução psicológica e espiritual mais rápida e organizada – preconizam a abstinência sexual. Mas essa abstinência não se dá por razões morais, uma vez que qualquer sistema religioso ou iniciático digno desse nome considera a função sexual humana tão natural e divina quanto qualquer outra função. A abstinência é aí recomendada num contexto de economia energética.
Para entender isso, façamos um paralelo com a energia elétrica que entra numa casa. Ela serve para acionar várias máquinas e para manter as lâmpadas acesas. Mas trata-se sempre da mesma energia elétrica. A casa dispõe de uma certa quantidade de corrente elétrica. Mas muitas vezes, para fazer funcionar uma única máquina de alto consumo, somos obrigados a desligar as demais, caso contrário o contador de eletricidade não agüenta e os disjuntores são automaticamente desligados. De maneira análoga, com o objetivo de canalizar uma maior quantidade de energia vital para certas funções mais ligadas à espiritualidade, aquelas pessoas preferem deixar parada a sua máquina sexual de modo a economizar energia.As escolas que preconizam o bloqueio da função sexual por razões de economia energética constituem, hoje, uma minoria.
A tendência moderna é, cada vez mais, a de encontrar meios para conciliar todas as funções naturais humanas – a sexual, inclusive – com as exigências das práticas de desenvolvimento espiritual. O importante a ressaltar é que não existe nada que impeça a concomitância de uma vida sexual e amorosa sadia – seja ela de tipo heterossexual ou homossexual – com vida espiritual.Assim, meu caro amigo, você vê que aquele orador cujas falas o deixaram tão perturbado, disse uma quantidade de bobagens irresponsáveis e bastante cruéis. Contra a natureza é aquilo que ele fez, perturbando a paz da sua alma jovem que começa a penetrar nos mistérios da vida, do amor e do sexo. Eu conheço esse orador pessoalmente, e sei que não foi a primeira vez que ele disse tais asneiras.
Muito cá entre nós, dada a maneira como ele desmunheca quando fala, você não acha que deveríamos perguntar a ele quantos banhos gelados ele toma por dia?Fique tranqüilo em relação à sua opção sexual. Deus, que o Criados de todos nós, criou você exatamente do jeito que você é. A única coisa que Ele lhe pede é que você aprenda a ser feliz exatamente do jeito que você é. Essa é a sua missão e o seu compromisso.
Quanto aos que riram na platéia, será que riram da tolice do orador ou riram de si próprios, dos próprios temores e preconceitos caretas?Combata com unhas e dentes aquela tendência a que você se referiu de considerar o seu companheiro como inimigo. Essa atitude foi ditada pelo medo, e este é o seu verdadeiro inimigo. O medo tem de ser enfrentado e destruído com a coragem, pois sua presença é incompatível com qualquer realização existencial e espiritual. Nunca veja o seu companheiro como inimigo, mas sim como amigo, e mais que amigo, como um irmão. Um irmão que provavelmente vive os mesmos problemas e anseios que você vive. Mostre para ele esta carta. Discutam juntos o seu conteúdo. Aqueles que pertencem a minorias devem se unir e se respeitar. Não devem permitir que a opinião da maioria seja um obstáculo à própria felicidade.Mas seja prudente. O mundo aprecia os audazes, mas não perdoa os afoitos, os incautos, os que não têm consciência de limites.
À parte os perigos da Aids, dos quais você certamente já tem conhecimento, existe um outro ainda mais insidioso, particularmente na sua opção sexual: a promiscuidade. A primeira põe em risco a sua saúde física e a própria vida do seu corpo. A segunda, quando exagerada, perturba a saúde psíquica. Esta, para quem deseja também a realização espiritual, é tão importante quanto a do corpo físico.Uma informação de que gostei na sua carta é quando você diz que aprecia a companhia das mulheres. Ótimo. Não é porque você pertence a uma minoria que deve eliminar a possibilidade de conviver com a maioria.
Confinar-se no interior de guetos, de redutos minoritários, é uma forma de renunciar a pedaços importantes da vida e do mundo. É também uma forma de cultivar os mesmos preconceitos que agora estão perturbando a sua tranqüilidade. Da sua vida, não afaste as mulheres. Você pode não gostar de transar com elas, mas não permita que sua preferência sexual por pessoas do seu sexo afaste de você pelo menos metade da humanidade. As mulheres têm coisas muito importantes para dar aos homens, mesmo aos homens gays. Conviver também com as mulheres, cultivar a amizade com elas, tentar compreendê-las como seres humanos que são, ao mesmo tempo tão diferentes e tão iguais a nós, homens, é fundamental para o nosso crescimento mais harmonioso e completo.Um ponto preocupante na sua carta é quando você diz que teve dificuldade num exercício grupal de meditação porque ‘estava fazendo uma coisa que para mim é proibida’. Absolutamente nada é proibido para você, a não ser coisas que façam mal a você ou a seus semelhantes.
Tenha sempre em mente que você é uma pessoa essencialmente igual a todas as outras pessoas que existem sobre a face da Terra. Todos nós com os mesmos direitos e os mesmos deveres.Para terminar, gostaria de lhe dizer que Deus nos deu um presente precioso cujo valor só está abaixo do valor da própria vida. Esse presente é a liberdade. Mas a liberdade não vem de graça. Mas a liberdade não vem de graça. Devemos pagar por ela um justo preço. Esse preço chama-se responsabilidade. As duas coisas caminham juntas, e uma não existe sem a outra. Você, como todos nós, é livre para viver como quiser. Mas é também responsável pela sua vida. E, mais ainda, como dizem os grandes sábios e sábias de todos os tempos, responsável por toda e qualquer vida.”

Por Luís Pellegrini

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